#memórias - Santa Margarida
ou de como Margarida de Antioquia é venerada nas Paredes do Guardão
I
A festa da minha infância tinha lugar na quinta-feira da Ascenção, quando descíamos ao Guardão para ver as cruzes das paróquias vizinhas que, em venerável procissão, vinham saudar a anfitriã. Tudo se passava ali, na tosca calçada romana que desce até ao cemitério e à Igreja Matriz. Ladeando-a, os imprescindíveis vendedores ambulantes, com os seus aviões de lata coloridos e, a seu lado as vendedeiras de doces com canastras cheias de cavacas, duras e cobertas de açúcar, e as tradicionais tortas de Nandufe, fofas e saborosas.
Depois da procissão, de um brinquedo e algumas guloseimas, era hora de regressar a casa, de subir à aldeia que então se chamava de Paredes do Guardão apesar de, já nessa altura, responder frequentemente pelo nome de Caramulo.
Ali, nas Paredes do Guardão, a festa era incerta, dependendo da vontade popular e da disposição para organizá-la.
Por vezes comemorava-se a chegada do Verão, celebrando de forma pagã o São João com um bailarico e um bar junto ao chafariz. Outras vezes evocava-se Santa Margarida, junto ao espigueiro e à pequena capela no coração do núcleo original da aldeia, a que chamávamos o Povo.
II
O Caramulo era então - e foi-o durante a maior parte do Século XX - uma terra dual, dividida, entre a Estância Sanatorial e o Povo, entre ricos e pobres, entre doentes - tuberculosos em processo de cura - e saudáveis, entre os funcionários e os outros. Os dois nomes que mantinha eram sinal dessa bipolaridade, e até o seu urbanismo reflectia com clareza cristalina essa divisão, com a larga Avenida a servir de fronteira entre dois mundos. De um lado estavam os Sanatórios, os chalets destinados aos médicos e funcionários da Estância, do outro as pequenas casas de granito que, alinhadas em estreitas e sinuosas ruas, constituíam as Paredes do Guardão anterior à criação da Estância Sanatorial do Caramulo. E, no meio destas, ficava a pequena capela de Santa Margarida.
Por oposição, foi do outro lado, junto ao Grande Sanatório, que se construiu a capela de Nossa Senhora da Esperança. De iniciativa privada, com linhas direitas e exemplar alvura, era nela que se rezavam as missas de Domingo, pontualmente às 11h da manhã. E, também ali era visível a divisão que definia o Caramulo, com o seu expoente máximo traduzido na espécie de camarote ao qual se acedia por um pequeno e simbólico portão de madeira no coro. Era o espaço reservado à família Lacerda, fundadora da Estância Sanatorial e próxima do poder político do Estado Novo. Era ali, por isso, que por vezes assistia à missa o ditador Oliveira Salazar, nascido em Santa Comba Dão, no sopé da Serra.
III
Os anos passaram e, se foram inclementes com a Estância, tornando-a irrelevante depois da descoberta dos antibióticos capazes de curar a tuberculose, pareceram não passar por Margarida de Antioquia, cuja celebração se tornou assídua, cuja festa se tornou a mais importante do Caramulo.
Margarida, ouvi-o ano após ano, era uma mulher cristã de beleza ímpar, que, servindo em Antioquia, foi alvo da cobiça de um ímpio e poderoso senhor que a quis tomar como sua. Esposa ou concubina, tanto lhe fazia, pondo como única condição a renúncia à sua fé Cristã. Não lhe cedendo, Margarida foi morta e tornada Santa. Ouvi-o e, como no ano anterior, questionei a razão de ser Margarida, nascida na longínqua Pisídia, venerada numa pequena aldeia enterrada na Serra do Caramulo. E, a cada ano, a pergunta ficava sem resposta, desvanecendo a cada passo da procissão que percorria as estreitas ruas d’o Povo. A Banda Filarmónica de Tondela seguia-a logo atrás, encerrando a cerimónia religiosa e enterrando a pergunta, sem resposta, por mais um ano.
IV
Voltei, como sempre, ao pequeno largo entre o espigueiro sem serventia e a pequena capela, para ouvir novamente a história de Margarida, recusando vergar-se à vontade de seu amo, sendo supliciada e tornada Santa. Corria o dia 21 de Julho quando Margarida voltou a percorrer as estreitas ruas do Povo, levada pelas mordomas, seguida pelos Caramulanos, os nascidos e os de adopção, os d’o Povo e os do outro lado da Avenida, os emigrantes e os que dali não arredam pé. Todos, sem distinção. O percurso, mais uma vez, foi feito apenas pelas estreitas e tortas ruas d’o Povo, de onde lhe lançam pétalas coloridas das mais belas flores. Segue-a a Banda Filarmónica que, num último sopro, dá por encerrado o périplo da Santa Margarida, novamente em frente à capela que lhe há-de servir de abrigo por mais um ano. Afinal é aquela a sua casa, e são aqueles, os que a seguem, a sua fé, à qual não renunciará, por largas que pareçam as ruas do outro lado da Avenida, que mais não fariam do que separar os que se querem juntos. Ali é o seu lar, por belos que pareçam os chalets e vivendas do novo Caramulo, mas de onde os braços, por maiores que sejam, não serão capazes de lhe lançar pétalas coloridas. Não, que a matem, mas que não a arranquem dali, da velha e modesta capela. Corria o dia 21 de Julho quando, já sem o incómodo da dúvida, sem o peso da pergunta, deixei a capela para trás, descendo a Rua do Albano da Farmácia, para tomar a direcção do “vale”. Sim, voltarei no próximo ano, num Domingo de Julho para o Povo, para o meu Caramulo, para a Paredes do Guardão da minha infância. Para ouvir novamente a história de Margarida, fiel ao seu Povo, cidadã das Paredes do Guardão.
Senhora da Hora, 29 de Setembro de 2024
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Adorei saber um pouco mais sobre essa terra que um dia hei de conhecer 😍