I - a viagem
Kalandula foi a minha primeira viagem Africana. Poucos meses tinham passado desde aquela madrugada de Março em que aterrei no aeroporto 4 de Fevereiro, desde aquele primeiro bafo quente e húmido de Luanda, que me beijou na porta do avião. Depois desse dia tinha chegado ao rio Kwanza, a sul, e ao Dande, a norte. Mas, para o inferior não tinha ido além de Muxima, santuário, destino de impressionantes peregrinações, e primeira das fortalezas Portuguesas ao longo do Kwanza. Sim, o meu fascínio por rios é antigo. Rios são as veias, as artérias, a força vital de qualquer país, e Angola não é excepção. Ansiava, por isso, pelo dia em que pudesse atravessar o Keve, o Longa o Cavaco ou o Lucala. Com o Cunene, o Zaire ou o Okavango nem sequer me atrevia a sonhar.
Naquele sábado de Agosto saía de Viana, nos arredores de Luanda, com a companhia de quatro amigos e o firme propósito de chegar a Kalandula antes do anoitecer. A visita às afamadas quedas de água, ficaria para o dia seguinte.
À medida que o caminho avançava, a paisagem ia mudando gradualmente. Antes da Via Expressa, enormes pavilhões ladeavam a estrada, muitos deles da época colonial. Depois da grande circular de Luanda, as empresas eram agora fruto do crescimento económico recente, algumas Angolanas ou Portuguesas, e outras de dimensões faraónicas, Chinesas. Saltam à vista a megalómana fábrica de cerveja e a gigantesca cimenteira, na cortada para o Bom Jesus. Depois disso a paisagem humaniza-se, povoada por pequenas construções proletárias de tijolo e zinco. De vez em quando, surgem casas de traça tipicamente Portuguesa, na sua maioria abandonadas. Á medida que nos afastamos da capital, a presença humana vai rareando, dando lugar a planícies imensas, dominadas pelos imponentes e omnipresentes embondeiros.
Surge então Catete, e depois a bifurcação de Maria Teresa. Para a direita segue a estrada do Dondo, caminho tradicional para Malange que, segundo ouvimos, de estrada tem hoje muito pouco. Tomámos por isso a esquerda optando pela mais recente e bem cuidada estrada para N’Dalatando.
O terreno torna-se então mais acidentado, a vegetação adensa-se e as construções são agora de pau-a-pique, com as típicas estruturas de madeira entrelaçada e revestidas com barro.
N’Dalatando, anteriormente chamada de Salazar, é hoje uma fervilhante Babel com mais de 100.000 almas. Transeuntes, motorizadas e candongueiros parecem multiplicar-se a um ritmo frenético, deixando uma sensação de alívio quando por fim retomamos estrada aberta.
Finalmente o rio Lucala, que vem descendo da sua nascente no Uíge até se render ao Kwanza, à sombra da mítica fortaleza de Massangano. Os tanques abandonados que ladeiam a velha ponte metálica, confirmam a importância daquele rio, daquela travessia. Do outro lado, a Província de Malanje, com o inevitável posto de controlo, a habitual inspecção aos passaportes e respectivos vistos, e o não menos habitual e velado pedido de uma gasosa. Fingimos não entender e seguimos viagem, que o caminho ainda é longo.
Mais à frente surge finalmente a pequena e pitoresca Cacusso, onde deixamos a N230 para os quilómetros finais rumo a Kalandula. E foi aí, nessa estrada de impecável asfalto que o sol entendeu que era chegada a hora de se retirar, com o proverbial dramatismo Africano. Confesso que, por muitos anos, ouvi com desdém relatos nostálgicos dos inigualáveis pores-do-sol de África. Não havia de ser assim tão diferente, pensava, afinal o sol é o mesmo, num movimento contínuo à volta do globo. Quando cheguei a Angola, porém, vi-me várias vezes parado na estrada a contemplar, embevecido, o ocaso do Astro-Rei. Há algo naquelas latitudes, seja a terra cor de sangue, seja aquele mar carregado de superação e tragédia, que empresta ao vulgar por-do-sol o gigantismo hipnótico de uma celebração da vida. Aquele dia não foi excepção e vimo-nos parados na beira de estrada, assistindo àquele Sol gigante e laranja passando por entre embondeiros, beijando pela última vez aquela terra vermelha.
Era já noite quando chegámos ao hotel.
II - as quedas
Domingo madrugou, trazendo com ele o nervoso miudinho da antecipação e da elevada expectativa que punha na visita às quedas. Recordava-me da Enciclopédia Juvenil lá de casa, que desfolhei vezes sem conta para ver as fotos de África no capítulo dedicado ao "Mundo Português". Entre elas, se a memória não me atraiçoa, estava uma imagem das quedas do Duque de Bragança. Não imaginava que alguns anos depois pudesse estar ali, em Angola, a meia-dúzia de quilómetros daquela imagem desbotada das minhas memórias de infância, rebaptizada entretanto como o nome de Kalandula.
Tomámos então a rua ladeada de velhas casas dos tempos coloniais, outrora escolas, vendas e até um edifício oficial, talvez Câmara Municipal ou uma qualquer repartição pública. Procurávamos indicações quando reparámos na enorme coluna de água que, elevando-se em forma de vapor acima da vegetação densa, denunciava a localização das quedas. Dirigimo-nos para lá, com pressa de chegar, tentando desesperadamente acalmar o coração que teimava em bater cada vez mais forte.
Saindo do carro, um som grave e envolvente anunciava a imponência do que estava para vir. Nada nos prepara, no entanto, para aquela primeira visão, para aquele vislumbre que faz os olhos turvarem-se perante a visão do Rio Lucala, desesperado, tentando encontrar caminho menos doloroso do que aquele, mas entregando-se por fim ao abismo, com orgulho e resignação.
Olhando em volta, deparamo-nos com turistas imóveis contemplando aquela beleza ímpar como se tivessem subitamente encontrado naquela paisagem um paraíso esquecido, onde se perdem agora, tentando talvez encontrar uma paz cada vez mais rara. Ou aqueles que, acometidos de uma estranha felicidade, saltam imprudentemente de pedra em pedra, quase nos limites do precipício, com um infantil sorriso rasgado no rosto.
Sim, há algo de redentor naquela paisagem, naquela beleza arrebatadora e virgem. Algo que nos enternece, que resgata a inocência e a alegria que fomos deixando nas margens da vida. Sim há algo de divino ali, naquela água que, pulverizada na queda, escapa ao seu destino e se transforma em nuvem mágica e omnipresente, tocando os que, embevecidos, se rendem a Kalandula. Como nós.
III - a descida
Contemplávamos demoradamente as quedas quando ouvimos o pequeno Francisco, que durante largos minutos tentava chamar a nossa atenção, prometendo a mais bela vista das cascatas. "Lá em baixo" dizia apontando para o sopé das cataratas, "muito melhor de que a vista daqui!". Quanto tempo, perguntámos, “é só descer por aqui, pai, 8 ou 9 minutos, 10 no máximo”. Aceitamos, iniciando a caminhada ao longo da estrada em asfalto, na direcção da vila. Uma centena de metros depois, seguimos por um carreiro entre pequenas e rudimentares lavras. Mandioca, esclareceu Francisco. Mais adiante as ruínas do que o pequeno guia diz ter sido uma barragem. Subitamente a vegetação adensa-se e o terreno torna-se acidentado. O Lucala passa a ser visível apenas a espaços quando algumas aberturas ocasionais na vegetação permitem vê-lo, serpenteando no vale, caminhando para o Kwanza. A inclinação, essa continua a aumentar, tornando providenciais os troncos dos arbustos e das árvores a que nos vamos agarrando para evitar males maiores.
Uma hora depois, chegávamos finalmente ao leito do Lucala, que corria já recomposto dos sobressaltos das quedas. Paramos então, para também nós nos recompormos da descida acidentada. Na água, entre as pedras, algumas armadilhas rudimentares, onde os jovens guias esperam apanhar cacussos desprevenidos. Não desta vez, pois continuavam vazias. Colocadas novamente da água para continuar a sua função, lembram-nos que é hora de seguir viagem, caminhando pela margem do rio acima, em direcção ao nosso destino.
Ali chegados sucumbimos, esmagados pela imponência das cataratas. Afinal são mais de 400m de extensão, por 100m de queda abrupta. Faltam palavras e, as poucas que nos ocorre dizer, dissolvem-se na nuvem de água pulverizada que tudo envolve. Em silêncio, cabisbaixos encaramos a subida de volta, certos de que aquele foi provavelmente um momento único, que nos acompanhará toda a vida, e que lembraremos sempre com um sorriso nos lábios.
IV - Musselege
A subida de volta fizemo-la com espírito de fim-de-festa. Pensávamos já no regresso a Luanda quando chegámos finalmente junto ao carro estacionado. Era a hora de acertar contas com o pequeno Francisco. Tínhamos perguntado várias vezes pelo preço, e várias vezes ouvimos a resposta, "não se preocupe, pai, no final, se gostarem, eu digo o preço". Mas, em vez disso, em vez do preço, recebemos uma proposta: Outra catarata, ainda mais bonita, e perto daqui, de carro é muito perto, diz Francisco. Duvidámos que alguma catarata fosse mais bonita do que aquela, como duvidámos que fosse perto. Mas, se viemos de tão longe, não podiamos recusar mais uma aventura.
Com Francisco no carro, tomámos então a EN140 em direcção a norte, a Camabatela. Alguns quilómetros depois, deixamos o asfalto para entrar numa estrada de terra vermelha, que nos havia de conduzir entre pequenas e rudimentares aldeias. Apresentavam uma estrutura semelhante, primeiro as pequenas lavras de mandioca, depois um terreiro, com pequenas casas à sua volta. Entre elas, sobressaía uma distinguindo-se das demais pelo tamanho, pelo aprumo das paredes, ou simplesmente pela bandeira que orgulhosamente ostentava. Era uma constante desde que saímos de Luanda, a existência de uma bandeira em cada aldeia por que passámos. As primeiras pareceram-nos bandeiras de Angola. Só depois reparámos que, no lugar da catana e da roda dentada estava apenas a estrela do MPLA. Mais tarde havíamos de encontrar algumas da UNITA também, facilmente identificadas pelo verde e pelo galo preto.
Falta muito para chegar, Francisco? “Três aldeias, pai, depois chegamos”.
As casas são agora de adobe, sendo possível por vezes observar todo o processo, desde a feitura dos tijolos, até à construção cuidadosa das paredes. Observo, com evidente deleite, aquilo que só havia visto em livros.
Após a terceira aldeia, a vegetação adensa-se e saímos para um pequeno e acidentado caminho. Ao sair do carro, é novamente o ruído a denunciar o local das quedas, desta feita, uma enorme algazarra de vozes, gritos e água.
O pequeno rio, surgia entre a vegetação para se precipitar em pequenas e sucessivas quedas, detendo-se brevemente em socalcos que parecem ter sido cuidadosamente esculpidos na rocha. Uma certa ordem no caos da natureza, que as cascatas artificiais habituais em jardins e matas românticas procuram mimetizar.
Ao contrário da imponência esmagadora de Kalandula, as quedas de Musselege têm a seu favor uma escala mais humana. É essa dimensão terrena que convoca a alegria contagiante das muitas crianças que transformam em piscina a enorme poça onde terminam as quedas de água. Daí o pequeno rio segue o seu destino até se juntar ao Lucala, que por sua vez há-de engrossar o Kwanza.
É hora, pois, de tomar o caminho de volta, deixando o pequeno Francisco em Kalandula, para depois rumar a Luanda. No fundo será como seguir aquele pequeno rio, correndo para poente até chegar ao mar, a tempo de mais um por-do-sol. A tempo de fechar um dia que perdurará na memória.
Mas, antes disso, há que acertar contas com Francisco. O preço? menos do que esperávamos, muito menos do que decidimos pagar ao nosso guia. Afinal, um dia destes não tem preço, memórias destas não se compram. Vivem-se, agradecem-se e guardam-se, em jeito de reserva para dias de saudade. Como hoje.
[relato da viagem a Kalandula em Agosto de 2014, escrita em Fevereiro de 2021]