I. Caminhando pelas ruas da medina de Kairouan, deparo-me com a mesquita das três portas. Mandada construir pelo comerciante Andaluz Muhammed bin Khairūn, o seu aspecto robusto, quase grosseiro, situa a sua génese no Século IX, evidenciando características que encontramos no estilo românico que que haveria de despontar na Península Ibérica nos Séculos X e XI, já em tempo de reconquista. A sua arquitectura assemelha-se, sei-o agora, à da Ermida del Cristo de la Luz, em Toledo, comprovando mais uma vez os laços dessa rede que outrora uniu ambas as margens do Mediterrâneo.
Para trás, na outra extremidade da Medina, ficava a Grande Mesquita, também chamada de Uqueba Ibne Nafi. De arquitectura sóbria, quase inalterada desde o Século IX, serviu de modelo inspirador para muitas das mesquitas do norte de África. Kairouan foi, aliás, uma referência para a expansão do Islão no Magrebe atraindo, ao longo do tempo, homens sábios e estudiosos do Corão para a cidade. Esse chamamento, que é particularmente visível na Madrassa onde Sidi Abid el Ghariani ensinou durante mais de 20 anos, sendo ali mesmo sepultado, talvez justifique o epíteto de quarta cidade santa da religião Muçulmana.
(foto: Mesquita das três portas em Kairouan, Fujifilm X-T30ii + XF 10-24mm f4)
II. A decadência económica de Kairouan havia de chegar no Século XI, quando, em 1057, os Banu Hilal, uma confederação de tribos beduínas que migraram do Alto Egipto para o norte da África, destruíram a cidade quase por completo. O título de capital da Ifríquia foi então perdido para Tunes, mais a norte, já na costa mediterrânica.
Antes disso, antes de Tunes e de Kairouan, era outra a grande metrópole da região, talvez até de todo o Mediterrâneo. Cartago povoou, por isso, inúmeras aulas de história da minha adolescência, garantindo para Aníbal o Cartaginês um lugar cativo no meu imaginário. O que dela resta é hoje um lugar incaracterístico, um bairro de vivendas discretas interrompido ocasionalmente por ruínas e lotes vazios, à espera de escavações que descubram mais um pouco do esplendor escondido debaixo da terra.
Resgatadas ao esquecimento podemos ver as duas colunas que restam dos banhos de Antonino e que, evocando memórias de grandeza, permitem imaginar a sumptuosidade do complexo termal de outrora. Como, um pouco acima, encontramos as que outrora foram as melhores vilas romanas, com vista privilegiada sobre o golfo de Tunes.
Mas é quando subimos a colina de Birsa que podemos ter um vislumbre do que teria sido outrora Cartago. É deixando a imaginação sobrevoar a velha cidadela fundada pelos Fenícios, galgando as muralhas romanas até aos charcos que foram outrora os míticos portos Púnicos, que entendemos a verdadeira dimensão da metrópole que dominou o Mediterrâneo, antes de sucumbir perante a Roma que tentou conquistar.
(foto: ruínas dos banhos de Antonino em Cartago, Fujifilm X-T30ii + XF 10-24mm f4)
III. Há um ar de decadência em Tunes, o mesmo ar de abandono que vi noutras cidades com passado colonial. Ao percorrer as ruas da Ville Nouvelle, construída durante o protectorado Francês, é inevitável não reparar nos edifícios simultaneamente requintados e decadentes, descuidados e sucessivamente descaracterizados com acrescentos e adaptações, sinais dos tempos que correm. Um pouco como em Luanda, ou Havana. Mas também em Palermo ou Atenas, Nápoles ou até mesmo em algumas partes de Lisboa. Talvez o denominador comum não seja, afinal, o passado colonial, mas sim o de serem cidades do Sul, com uma história rica, mas que acaba por se tornar demasiado pesada para tempos que se voltaram para Norte.
Na falta da muralha original, a porta de Bab El-Bahr, marca a fronteira entre a Ville Nouvelle e a medina. Dali podemos seguir pela movimentada Rue Jamaa Zitouna, ou pela mais tranquila Rue du Kasbah. A primeira, dá-nos o caos, com vendedores a tentar adivinhar a nacionalidade dos turistas para, logo de seguida, os convencerem a entrar nas pequenas lojas de onde dificilmente sairão de mãos a abanar. Ao contrário, na Rue du Kasbah reina uma tranquilidade que chega a soar estranha, tal o silêncio. Ali, famílias Tunisinas fazem as suas compras, experimentando roupa e ou bebendo um thé a la mente com um merecido sossego impossível em outras medinas que se tornaram referências turísticas.
No centro de tudo, parte integrante e indissociável da medina de Tunes, encontra-se a mesquita Ez-Zitouna, a maior da cidade. Incrustada no labirinto urbano, como se dele se alimentasse, está voltada para o interior, para os crentes muçulmanos. Passaria, por isso, despercebida a um incauto visitante, não fosse pelo belo minarete de secção quadrangular.
Foi com esperança de encontrar uma melhor visão do seu interior, da mesquita, que nos deixámos conduzir, através de uma grande loja de tapetes, ao que supúnhamos ser o famoso terraço do Café Panorama. “Not the fake Panorama”, assegurava o nosso guia, apontando com desprezo para uma placa na rua que o anunciava. Lá chegados, percebemos que se tratava de um dos muitos terraços enfeitados com azulejos coloridos, que se elevam nas imediações da mesquita. Não era o verdadeiro, que nos sorria a poucos terraços de distância, mas serviu para ter uma melhor perspectiva, se não da mesquita, da labiríntica medina, alma de Tunes.
(foto: medina de Tunes, Fujifilm X-T30ii + XF 10-24mm f4)
IV. Do período em que o Império de Roma chamou, com propriedade, o Mediterrâneo de Mare Nostrum, talvez não tenha encontrado monumento mais impressionante do que o anfiteatro de El-Jem. Chamada anteriormente de Tisdro, esta cidade outrora próspera graças à agricultura e ao azeite, teve o seu apogeu durante o reinado de Adriano, sendo a única cidade do Império com três anfiteatros construídos em épocas distintas. Desses, chegou aos nossos dias o mais recente e, por isso, mais imponente. Emergindo com estrondo da malha urbana da pequena cidade, surpreende pela dimensão e estado de conservação. Com capacidade para quase 30.000 espectadores, perde em tamanho apenas para Roma e Verona, sendo um dos maiores de todo o Império.
Longe das multidões que enchem o Coliseu de Roma, a visita permite circular livre e tranquilamente pelas bancadas, pela arena ou corredores. E, caminhar pelas suas galerias, subindo as escadarias que lhes dão acesso, lembra-nos, por comparação com um qualquer estádio de futebol actual, do pouco que evoluímos nos últimos 2000 anos. A arquitectura e urbanismo romano, moldaram as cidades e as construções até aos dias de hoje, sendo razão e consequência da expansão do Império a todo o Mediterrâneo e à maior parte da Europa. Os seus sinais que perduram são, a par com o legado árabe, grego, fenício, cartaginês e egípcio, entradas da matriz que nos moldou, ainda que demasiadas vezes o esqueçamos. Contemplar este anfiteatro, devia relembrar-nos essa pertença, essa afinidade contida no mar que nos une e que, desgraçadamente, transformamos amiúde em fronteira.
(foto: anfiteatro de El-Jem, Fujifilm X-T30ii + XF 10-24mm f4)
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Belíssima e instrutiva viagem que o seu texto nos permite, Pedro Rui! Bom rever alguns fragmentos dos estudos básicos de história mundial, dos tempos idos.